Campeonato de Xadrez dos Filósofos (Monty Python!) Rodada 2

Campeonato de Xadrez dos Filósofos (Monty Python!) Rodada 2

Avatar de estdx
| 9

O Campeonato Internacional de Xadrez de Filósofos continua num ritmo alucinante! Depois das surpresas da primeira rodada, ficamos felizes em comentar sobre as melhores partidas da segunda rodada:

  1. Hobbes vs. Pascal
  2. Platão vs. Aristóteles
  3. Pirro vs. Sócrates

1. Hobbes vs. Pascal

Na partida entre o famoso filósofo e matemático francês Pascal e o contratualista inglês Hobbes, enquanto jogavam, os dois debatiam animadamente.

— A natureza do enxadrista é má — disse Hobbes. — É por isso que os jogadores de xadrez primitivos, sempre com medo de que o adversário fosse um cheater,abriram mão de parte de suas liberdades individuais e as depositaram nas mãos do Leviatã, ou seja, do árbitro, que tem poder absoluto para punir os transgressores. E o poder do Estado, ou seja, da FIDE, foi desejado por Deus para colocar ordem no mundo do xadrez!

— Na verdade, caro Hobbes — respondeu Pascal —, uma aposta que eu sempre faço, mesmo quando estou jogando online, é que meu adversário nunca é um cheater. Existem quatro possibilidades:

  • Confiar no adversário e ele não ser um cheater: Nesse caso, seu ganho é infinito, porque sua confiança foi honrada.
  • Confiar no adversário e ele ser um cheater: Nesse caso, sua perda é mínima, porque você perde a partida, mas isso te motiva a estudar mais.
  • Não confiar no adversário e ele não ser um cheater: Nesse caso, sua perda é infinita, porque você passa nervoso sem necessidade.
  • Não confiar no adversário e ele ser um cheater: Nesse caso, seu ganho é mínimo, porque sua desconfiança estava certa e você ganha de volta os dois pontos de rating que perdeu.

então, continuou Pascal, compensa sempre acreditar que seu adversário não é um cheater.

E aí, quem você acha que estava certo: Hobbes ou Pascal? Escreva nos comentários!

Saiba mais


Com uma visão extremamente pessimista da natureza humana, Thomas Hobbes — um dos maiores pensadores políticos da história da Inglaterra — descreveu a vida no estado de natureza como “solitária, pobre, sórdida, brutal e curta”.

Para ele, os homens são movidos principalmente por dois impulsos: o medo da morte violenta e o desejo de ganhos pessoais. Esses interesses individuais se sobrepõem à moral e à cooperação. É daí que nasce a célebre máxima: “o homem é o lobo do homem” (homo homini lupus).

Hobbes acreditava que todos, sem exceção, tendem ao egoísmo. Basta pensar — dizia ele — no motivo pelo qual as pessoas se trancam dentro de suas casas: o medo de terceiros mal-intencionados. E não se trata apenas da força física: até o mais fraco pode matar o mais forte, aproveitando-se da vulnerabilidade do sono ou da astúcia de um ataque surpresa. Assim, a vida natural seria uma guerra constante de todos contra todos (bellum omnium contra omnes).

A única solução para conter essa falta de escrúpulos e garantir a segurança seria a criação de um Estado forte, baseado no medo da punição. Para isso, cada indivíduo deveria abrir mão de parte de sua liberdade em nome da segurança coletiva — é o que Hobbes chamou de contrato social.

No centro desse contrato estaria o soberano, que concentra o poder de garantir os direitos e punir as transgressões. Hobbes o comparou ao Leviatã, monstruoso animal marinho citado na Bíblia, capaz de impor respeito pelo seu tamanho e força.

Sua obra mais famosa, O Leviatã (1651), traz já nas primeiras páginas uma ilustração célebre: um gigante sobre uma colina, segurando uma espada numa mão e um cetro na outra. De longe, parece um corpo único; de perto, vemos que é formado por inúmeros indivíduos. Essa imagem simboliza o Estado: uma construção coletiva, composta pelo povo, mas personificada na figura do soberano. Sem esse poder central, a sociedade se desfaria em indivíduos isolados, cada um lutando apenas pela própria sobrevivência, e a violência voltaria a imperar.

Diferente de contratualistas posteriores, Hobbes defendia que o soberano deveria ter poder absoluto: leis, justiça, religião e exército subordinados a ele. O governante não estava submetido ao contrato — apenas o povo. Se o poder se fragmentasse, o Estado se enfraqueceria e a guerra civil retornaria.

Uma crítica moderna a Hobbes é que sua teoria legitima uma forma de poder sem freios, concentrada nas mãos de um único indivíduo, o que facilmente pode resultar em opressão contra críticos e dissidentes. Diferentemente da maior parte do Ocidente moderno, Hobbes não acreditava na democracia: desconfiava da capacidade das pessoas de tomarem decisões por si mesmas e temia o retorno do caos caso o poder fosse dividido. No entanto, olhando em retrospecto, alguns intérpretes sugerem que, se tivesse conhecido os grandes tiranos do século XX, talvez revisse sua defesa de um poder absoluto.

Assim como Hobbes, o francês Blaise Pascal tinha uma visão bastante pessimista da condição humana. Influenciado pela doutrina cristã do pecado original, acreditava que, desde a queda de Adão e Eva no Jardim do Éden, a natureza humana estava corrompida, inclinada ao mal moral. Mesmo assim, via esperança: o ser humano podia render bons frutos, desde que mantivesse firme a fé em Deus.

Pascal propôs a seguinte reflexão:

      1. Se alguém acredita em Deus e Deus existe, o ganho é infinito: a vida eterna no Paraíso.
      2. Se alguém acredita em Deus e Deus não existe, a perda é mínima: alguns esforços com oração, leitura da Bíblia, participação em ritos religiosos, e eventuais prazeres materiais sacrificados.
      3. Se alguém não acredita em Deus e Deus existe, a perda é infinita: condenação eterna no Inferno.
      4. Se alguém não acredita em Deus e Deus não existe, o ganho é mínimo: apenas o tempo poupado em práticas espirituais.

Conclusão: agir como um apostador racional significa escolher acreditar em Deus, já que o possível ganho é infinito e a possível perda, mínima.

Pascal não queria que sua aposta fosse entendida como um mero cálculo de interesse egoísta. Ele sugeria que, uma vez convencida da vantagem racional de crer, a pessoa deveria começar a agir como crente: ler as Escrituras, frequentar a igreja, orar. A fé não surge de imediato por decisão voluntária, mas se fortalece pela prática. Com o tempo, o cálculo da aposta deixaria de importar, pois a própria experiência espiritual tornaria a fé autêntica.

A famosa aposta recebeu muitas críticas, muitas delas também usando a lógica da probabilidade. Uma objeção é que crer apenas pelo cálculo de ganhos e perdas não seria fé genuína, mas sim oportunismo. Outro problema é que a aposta não prova que o Deus verdadeiro seja o cristão, e a probabilidade de escolher a religião certa seria 1 dividido pelo número total de religiões, o que é extremamente baixo.

Apesar das críticas, a Aposta de Pascal continua sendo um dos argumentos mais influentes da filosofia da religião, justamente por unir fé e racionalidade de modo inovador.

2. Platão vs. Aristóteles

O eminente Platão — o famoso fundador da Academia de Atenas, em cuja entrada, como todos sabem, ele mandou escrever: “Não entre aqui quem não for jogador de xadrez” — jogou com as brancas contra Aristóteles.

Platão, em vez de fazer seu lance inicial, insistia que o tabuleiro e as peças à sua frente eram meras cópias do verdadeiro jogo de xadrez, que acontece no Mundo das Ideias. Aristóteles reclamou que seu adversário estava enrolando, e ameaçou chamar o árbitro. “Sou amigo de Platão, mas mais amigo do xadrez!”, ele disse à imprensa, depois da partida.

— Olhai o exemplo do cavalo — Aristóteles disse a Platão. — Nós crescemos vendo esses animais: quadrúpedes, peludos, com focinho, pulando em forma de “L”, até que nos acostumamos e aprendemos que os cavalos têm essas características!

— Coisíssima nenhuma! — Rebateu Platão. — A alma aprende a jogar xadrez no Mundo das Ideias, antes de encarnar. Depois que encarna, ela simplesmente se lembra das regras.

E aí, você é do time Aristóteles ou Platão? Escreve nos comentários!

Saiba mais


Para Platão, existe um abismo entre realidade e aparência: o mundo não é o que parece ser. Essa visão é ilustrada pelo Mito da Caverna, em que prisioneiros acorrentados, voltados para uma parede, assistem às sombras projetadas por objetos que passam diante de uma fogueira. Eles tomam essas sombras por realidade. Um deles consegue libertar-se, sai da caverna e, após se acostumar à luz do Sol, contempla a verdadeira realidade. Ao voltar para contar aos demais, é rejeitado e considerado tolo. O prisioneiro liberto representa o filósofo que busca o conhecimento.

Platão não se via como detentor da verdade, mas como amante do saber – daí o termo “filósofo”. Para ele, os objetos do mundo físico despertam em nós a lembrança das Formas: entidades perfeitas, eternas e imutáveis, existentes num plano espiritual. Antes de nascer, cada alma contemplou essas Formas em maior ou menor grau (as que não contemplaram nenhuma encarnam como animais irracionais). Assim, aprender é recordar, o que é conhecido como teoria da reminiscência. Essa teoria implica que algumas pessoas são naturalmente mais aptas a aprender do que outras.

Segundo Platão, toda alma possui três partes:

      1. Racional — busca a verdade e o conhecimento; é a parte predominante nas almas de ouro, próprias para governar. 
      2. Irascível — busca  coragem e a honra; é a parte predominante nas almas de prata, próprias para a defesa. 
      3. Apetitiva — busca prazeres e bens materiais; é a parte predominante nas almas de bronze, próprias para o trabalho e a produção.

Com base nisso, Platão propôs, em A República, um modelo de sociedade dividido nessas três classes. Para garantir igualdade de oportunidades, sugeria que as crianças fossem separadas de seus pais e educadas pelo Estado, para que se identificassem os mais e os menos talentosos e cada um fosse destinado à função adequada. A justiça, para ele, consistia em cada classe cumprir sua função sem usurpar a das outras.

Platão também fundou a Academia, que muitos consideram a primeira instituição de ensino superior do Ocidente, dedicada ao estudo de filosofia e matemática (principalmente geometria, tanto que ele mandou escrever na entrada da Academia a frase "Não entre quem não for geômetra) e ao treinamento físico dos participantes. Lá, ele educou outro titã da filosofia grega, Aristóteles, que se tornaria crítico de suas ideias.


Enquanto Platão acreditava que os objetos do mundo físico são cópias imperfeitas de Formas abstratas, Aristóteles fascinava-se com os detalhes concretos do mundo que o cercava. Ele fez observações minuciosas da natureza, estudando diversas espécies de plantas e animais, e deu contribuições duradouras para o avanço da biologia.
Quando percebeu que suas ideias eram muito diferentes das de Platão — sobre quem disse: “sou amigo de Platão, mas mais amigo da verdade” —, Aristóteles fundou sua própria escola em Atenas: o Liceu.

A famosa frase “uma andorinha não faz verão”, muitas vezes atribuída a outros autores, é de Aristóteles. Ele a usou para mostrar que não basta uma única observação para tirar conclusões: é preciso manter-se aberto ao conhecimento obtido pelos sentidos e reunir diversas experiências.

Para Platão, ao ver um cachorro, despertamos em nossa mente a ideia perfeita de “cachorro”, inata, que a alma já conhecia antes de nascer. Para Aristóteles, não nascemos com ideias prontas: formamos conceitos a partir da observação repetida de muitos exemplos concretos, até identificar as características que definem uma categoria (no caso do cachorro: ter pelos, cauda, latir etc.). Uma vez formada essa ideia geral, podemos reconhecer e diferenciar os seres daquele grupo.

Dessa valorização da experiência e da generalização, nasce também a importância da lógica dedutiva em seu pensamento. Aristóteles desenvolveu a teoria do silogismo, forma de raciocínio que parte de duas premissas para chegar a uma conclusão lógica. Um exemplo clássico é:
> Todos os homens são mortais.
> Sócrates é homem.
> Portanto, Sócrates é mortal.

Esse método foi a base da lógica formal por mais de dois mil anos e influenciou profundamente o pensamento ocidental.

3. Pirro vs. Sócrates

— Caro Sócrates — disse o cético Pirro, com as brancas e com sua mania incorrigível de sempre duvidar de tudo — quando eu jogo online, não tenho como saber com certeza se meu adversário é ou não um cheater, então eu me conformo e simplesmente jogo sem desconfiar, mesmo quando ele tem 300 de rating e faz uma precisão de 98% com cinco lances brilhantes.

— Faz sentido, meu sábio Pirro — Rebateu Sócrates. — Mas, para começar, o que é mesmo cheatear? Pergunto porque sou ignorante e pouco sei sobre o xadrez online.

— Ora, caro Sócrates, mesmo achando que nossos sentidos nos enganam o tempo todo, essa resposta eu consigo te dar com segurança: cheatear é jogar sujo, usando ajuda externa ou fazendo stalling, como deixar o tempo cair em vez de abandonar numa posição perdida.

— Interessante! Mas, me diga: E se um jogador tem que largar o computador no meio de uma partida, na qual ele está perdido, para apagar um incêndio?

— Bom… Esse caso é diferente, porque o jogador deixou de abandonar para resolver um problema que, se adiado, teria consequências lastimáveis.

— Mas e no caso de um jogador que não abandona de propósito, por orgulho, ele não estaria simplesmente adiando uma consequência lastimável para ele?

E, algumas frases depois, o diálogo terminou num empate aporético.

Saiba mais

Sócrates, que viveu em Atenas no século V a.C., é considerado um dos pais do pensamento ocidental. Sua importância vem do fato de ter buscado por causas "espirituais" para as ações humanas, aproximando-se da metafísica e distanciando-se dos filósofos naturalistas pré-socráticos, que buscavam pela arkhé, ou seja, pela substância física que seria a origem de todas as coisas.

Para investigar as ideias das pessoas, Sócrates desenvolveu um método próprio, com duas etapas:

Ironia – por meio de perguntas, expunha a ignorância ou as contradições de seus interlocutores, desmontando a falsa segurança deles.

Maiêutica – nome dado em homenagem à sua mãe, que era parteira; nesta fase, também com perguntas, ajudava o interlocutor a “dar à luz” ideias mais elaboradas ou, ao menos, a perceber a complexidade do tema. Muitas vezes, o diálogo terminava em aporia (impasse), sem resposta definitiva, mas com maior clareza sobre a dificuldade do assunto.

Sócrates entrou em embates com sofistas famosos — mestres da oratória e da argumentação, mais comprometidos com o convencimento do que com a busca da verdade. Acabou sendo acusado de corromper a juventude e de introduzir novos deuses na cidade. Foi condenado à morte por ingestão de cicuta e, em vez de fugir, aceitou seu destino, pois preferia morrer a viver uma vida sob censura.


Pirro de Élis colocava em dúvida tudo o que julgamos entender. Para ele, não sabemos de nada — e até essa afirmação é incerta, como gostam de apontar os críticos do ceticismo. Já que sempre há a possibilidade de nos enganarmos ao tirar conclusões, o mais prudente é não afirmar nada com certeza e manter a mente aberta para possibilidades diferentes daquelas em que acreditamos.

Ele lembrava que, no escuro ou a grandes distâncias, podemos confundir objetos: aquilo que parece uma coisa pode ser outra. Um barulho que julgamos assustador pode não ser nada demais. Esses exemplos mostram o quão falhos são os sentidos. Mas Pirro foi além: levou a incerteza também para o uso da razão, adotando uma postura muito mais radical do que a frase de Sócrates “Só sei que nada sei”, que, de certo modo, tem algo de cético, mas não chega ao mesmo extremo.

Uma das intenções de Pirro era alcançar tranquilidade de espírito (ataraxia), algo que mais tarde também seria valorizado pelos estóicos. Ele passou algum tempo na Índia, onde teria convivido com místicos e presenciado demonstrações de resistência física extrema — como faquires andando sobre brasas ou deitando sobre camas de pregos —, experiências que devem ter influenciado sua visão de mundo.

Pirro afirmava que nem sempre o que parece perigoso de fato é. Por isso, dizia para não nos deixarmos impressionar pelas aparências — como a de um cão que parece prestes a morder, pois talvez ele não tenha tal intenção. O mesmo, para ele, valeria para qualquer coisa que observamos: são apenas aparências, e nunca saberemos como o mundo realmente é.

A primeira crítica a Pirro vem da fragilidade de sua lógica: partir da premissa “não podemos conhecer nada” para concluir que “devemos ignorar nossos pressentimentos sobre o que é perigoso” não é coerente. É verdade que nossos pressentimentos às vezes falham, mas eles existem justamente para nos proteger — e é mais provável que devamos confiar neles do que ignorá-los.

O problema de Pirro é a radicalidade. A maioria dos filósofos, em certo sentido, é cética, na medida em que rejeitam o dogmatismo e não aceitam verdades como evidentes e imunes a questionamentos. Mas Pirro propôs um ceticismo extremo, difícil até para ele próprio seguir: relatos indicam que ele ainda sentia medo e não conseguia se livrar de toda a ansiedade, apesar de defender que o cético perfeito viveria livre dessas perturbações.

Continuamos atentos, fazendo a cobertura desse evento único, e esperamos que venham mais partidas emocionantes.

E você, quem acha que vai sair vitorioso nessa primeira edição do Campeonato Internacional de Xadrez de Filósofos? Diga nos comentários!

— estdx, para o Chess.com.

Recomendação de leitura: Uma breve história da filosofia, Nigel Warburton, Ed. L&PM, 2024.

Por favor, conheça minha página pessoal, clicando aqui. Obrigado!

Bem-vindo ao meu Blog! Aqui, você encontrará principalmente resenhas de livros sobre xadrez.

Eventualmente, alguns posts sobre curiosidades e história do xadrez serão publicados também!

Billy