Como Seria o Campeonato de Xadrez dos Filósofos? (Monty Python!)

Como Seria o Campeonato de Xadrez dos Filósofos? (Monty Python!)

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Temos certeza de que todos os que estão acompanhando o Campeonato Internacional de Xadrez de Filósofos estão considerando esse evento como a mais espetacular competição do gênero até hoje (até porque é a primeira).

Nesse acontecimento inédito, no qual se reuniram filósofos de todos os lugares e épocas para disputar um torneio eliminatório, sem dúvidas já houve diversas partidas inesquecíveis, menos pela qualidade dos lances do que pelas situações pouco convencionais surgidas entre os adversários.

Na arbitragem, embora tenhamos de reconhecer que o eminente Heráclito faz o possível para manter a ordem, suas mudanças de decisão constantes não contribuem com o foco dos jogadores. Ele se justificou à imprensa dizendo que "Ninguém joga o mesmo jogo de xadrez duas vezes".

Confira neste post um resumo das partidas mais emocionantes até o momento!

  1. Descartes vs. Hume
  2. Kant vs. Nietzsche
  3. Sócrates vs. Marx

Leia também: Campeonato de Xadrez dos Filósofos, Rodada 2

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1. Descartes vs. Hume

Com as brancas, o francês Descartes, pai do racionalismo moderno e da geometria analítica, depois de avaliar seus possíveis lances iniciais por meia hora, abriu a partida com um murmuro: "Penso, logo movo o peão para e4".

O inglês Hume, em vez de fazer seu lance, iniciou uma discussão, rebatendo: "Não é pela lógica, mas pela experiência que nós sabemos que esse peão existe".

Seguiu-se um debate acalorado, e nenhum outro lance foi feito na partida até que a seta caísse.

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René Descartes se preocupava com a origem das nossas certezas: em que elas estariam fundamentadas? O que garantiria que não estamos apenas sonhando neste momento, acreditando fazer algo quando, na verdade, nada acontece?

Ele foi além: mesmo que estivéssemos acordados — e pudéssemos nos beliscar para provar isso — poderia haver um “gênio maligno”, uma entidade poderosa que manipula nossos sentidos e nos faz acreditar que os fenômenos que observamos são reais, quando na verdade a realidade é completamente diferente.

Descartes sabia que seria impossível viver questionando tudo o tempo todo. O que ele queria era, uma vez na vida, fazer uma revisão radical do conhecimento, desmontando seu edifício de crenças até o limite, para reconstruí-lo sobre bases firmes.

O procedimento cartesiano ficou conhecido como dúvida metódica ou dúvida cartesiana. A regra era simples: não aceitar nada como verdadeiro se houver a mínima possibilidade de dúvida. Descartes comparou o processo com um saco de maçãs: para garantir que restem apenas as boas, é preciso esvaziar o saco, examinar uma a uma e devolver apenas as saudáveis, descartando as podres. Mesmo correndo o risco de jogar fora algumas maçãs boas que pareçam ruins, o resultado final é um saco confiável.

Assim, Descartes retirou todas as suas crenças e foi testando quais resistiam à dúvida. Ele queria encontrar pelo menos uma certeza indubitável.

Os sentidos? Enganam com frequência.

A matemática? Parece firme, mas o gênio maligno poderia nos iludir até em contas simples, como 2 + 2 = 4 (que poderia ser 5).

A certeza inquestionável que ele encontrou foi: se eu estou pensando — mesmo que duvide, mesmo que esteja enganado — então eu existo. Daí vem a fórmula em latim: Cogito, ergo sum (Penso, logo existo).

Depois de se convencer da própria existência, Descartes procurou sair do ceticismo radical. Ele argumentou que a ideia de Deus em nossa mente não poderia vir de nós mesmos — seres finitos — mas apenas de um Ser infinito. Além disso, se Deus é perfeito, Ele deve existir, pois a inexistência seria uma imperfeição.

Outro ponto: como Deus é infinitamente bom, Ele não nos enganaria o tempo todo. Embora possamos errar ocasionalmente, quando temos ideias claras e distintas, elas devem ser verdadeiras, porque Deus nos deu essa capacidade de apreender a verdade. Assim, para Descartes, a garantia última contra o ceticismo não é apenas o cogito, mas a existência de um Deus bom e não enganador. A partir dessa base, ele reconstrói o edifício do conhecimento.


Diferentemente de Descartes, para quem o conhecimento se origina da razão, para David Hume a origem é a observação e a experiência. Isso o levou a questionar uma famosa prova da existência de Deus, baseada na lógica em vez do empirismo, conhecida como Argumento do Desígnio.

Esse argumento se baseia na observação de que tudo na natureza parece ter sido feito para uma determinada finalidade. O olho humano, por exemplo, parece ter sido criado para enxergar, assim como os relojoeiros fabricam relógios para consultar as horas. No caso do olho e de todas as outras coisas da natureza, o criador só poderia ser Deus. Esse raciocínio extrai, a partir de um efeito, uma causa: toma-se o efeito (o relógio ou o olho) e arrisca-se dizer o que o causou (o relojoeiro ou um Artesão Divino).

O argumento do desígnio depende, portanto, de uma analogia. Confia-se que existe algo de muito semelhante entre um relógio e um objeto natural, como o olho — ou qualquer outra coisa da natureza que, segundo os adeptos do argumento do desígnio, seriam mais confirmações da existência de Deus —, e invoca-se o princípio de que, se duas coisas são semelhantes em alguns aspectos, muito provavelmente também o serão em outros. E como as coisas da natureza são muito mais engenhosas e complexas do que um relógio, o Artesão Divino teria de ser tanto mais inteligente e poderoso do que o homem, o que leva os teístas a acreditar que se trata de Deus, onipotente, onisciente e benevolente.

Em seus póstumos Diálogo sobre a religião natural e na Seção XI de seu livro Investigações sobre o entendimento humano, Hume se queixa da fraqueza da analogia e da limitação da conclusão no argumento do desígnio.

Em relação à fraqueza da analogia, ele diz que não existe uma relação direta entre o relógio e o olho. Embora ambos sejam mecanismos sofisticados que cumprem funções particulares, trata-se de uma semelhança apenas vaga, e quaisquer conclusões que sejam tiradas com base nela serão igualmente frágeis.

Sobre a limitação da conclusão, Hume diz que, mesmo que alguém aceite o argumento do desígnio, é necessário reconhecer que são poucas as informações que ele fornece. O olho pode ter sido criado por um Deus onipotente, onisciente e benevolente, como querem os cristãos; ou por um Deus jovem que ainda estava aprendendo a usar seus poderes, o que explicaria porque o olho é imperfeito, com pessoas míopes e com outros problemas de vista — algo que os teístas têm dificuldade em explicar; ou por um grupo de deuses menores. Nenhuma dessas hipóteses é descartada pelo argumento do desígnio.

2. Kant vs. Nietzsche

O idealista alemão Immanuel Kant claramente tentou seguir regras morais absolutas na partida contra seu conterrâneo, Friedrich Nietzsche. "O que aconteceria se todos fizessem esse lance?", se perguntava Kant, aplicando seu imperativo categórico. Nietzsche, por sua vez, demonstrou um estilo de jogo caótico, declarando que as regras são uma ilusão criada pelos fracos. Kant abandonou após um colapso ético, enquanto Nietzsche derrubou as peças no chão, rindo.

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Para Immanuel Kant, a moral não depende de sentimentos ou circunstâncias, as decisões morais devem ser tomadas objetivamente, com base na razão, sem influência das emoções ou de interesses pessoais.

Por exemplo, se um estranho batesse à sua porta pedindo ajuda, mesmo que houvesse suspeita, Kant defenderia que o certo seria acolhê-lo e cuidar dele. Isso porque a máxima “cuidar do próximo” é o que ele chamava de um imperativo categórico: não vale apenas em situações convenientes, mas deve ser respeitado sempre.

O termo “imperativo” já sugere a noção de dever. Diferentemente de outros filósofos, Kant sustentava que só têm valor moral as ações praticadas por dever. Em outras palavras: o que importa não é a consequência, nem o sentimento, mas a máxima que orienta a ação.

Ele cita a parábola do Bom Samaritano: se o samaritano tivesse ajudado a vítima apenas para conquistar o céu, sua atitude teria sido egoísta, um meio para alcançar um fim (o Paraíso). Esse seria um caso de imperativo hipotético, do tipo “se quiser X, faça Y”. Já quando o samaritano age simplesmente porque a máxima “cuide do próximo como a si mesmo” é um dever moral universal, sua ação tem verdadeiro valor moral.

Para Kant, a moral é um sistema de imperativos categóricos. Ele desenvolveu sua teoria a partir da pergunta: “E se todos agissem assim?”. Essa é a famosa fórmula da universalização do imperativo categórico.

Outro aspecto importante do pensamento kantiano é a ideia de que cada pessoa deve ser tratada sempre como um fim em si mesma, e nunca apenas como um meio. Isso significa que não podemos usar os outros apenas como instrumentos para atingir objetivos pessoais, o que fundamenta grande parte das concepções modernas de direitos humanos.


No século XIX, Friedrich Nietzsche declarou que “Deus está morto” — não como afirmação literal, mas como diagnóstico cultural: a crença em Deus, que por séculos deu fundamento e sentido à moral europeia, havia perdido força e credibilidade. Para ele, a modernidade já não podia sustentar os mesmos valores baseados em fundamentos divinos, e isso exigia uma transformação radical na maneira como o homem vive e cria sentido para sua vida.

A morte de Deus deixava uma questão central: se não há fundamento divino, o que sustenta nossos valores morais?. Para Nietzsche, a solução não era simplesmente manter a moral cristã sem Deus, mas investigar a própria origem dos valores — tarefa que ele chamou de genealogia da moral.

Ao estudar essa genealogia, Nietzsche concluiu que a moral cristã, que valoriza a humildade, compaixão e obediência, teve origem numa inversão, feita pelos oprimidos, de valores aristocráticos, que priorizavam a coragem, a força e o orgulho.

Com a morte de Deus e a crítica à moral tradicional, Nietzsche defendia a transvaloração dos valores: abandonar as velhas amarras morais e criar novos valores afirmativos, que não fossem produto de ressentimento, mas de força criadora. Esse processo culminaria no ideal do Übermensch (além-do-homem): o indivíduo que vive segundo seus próprios valores, senhor de si e autor da própria vida, transformando-a numa obra de arte.

Para testar se alguém realmente vive dessa forma afirmativa, Nietzsche propôs o conceito do eterno retorno: imagine viver sua vida inteira, exatamente igual, infinitas vezes, sem nada mudar. Aquele que diz “sim” a essa possibilidade é quem vive plenamente, assumindo até dores e erros como parte inseparável daquilo que faz a vida valer a pena. Essa atitude se resume no princípio do amor fati — amar o próprio destino.

3. Sócrates vs. Marx

Marx estava insatisfeito desde antes da partida, porque queria abolir o rei e coletivizar as peças, transformando todos em peões iguais.

Enquanto Sócrates, seguindo seu famoso método, propôs uma pergunta a seu adversário para cada lance que fazia:

— Meu caro Karl, o que é fair-play? Pergunto porque, como sabes, sou ignorante e pouco afeito a essas coisas modernas.

— Ora, estimado Sócrates, fair-play nada mais é do que jogar sem auxílio de computadores (um produto do capitalismo) ou outros humanos, e respeitar seus adversários.

— Interessante! Porém, infelizmente, isso significa que não poderemos continuar nossa partida, e nenhuma partida daqui em diante poderá ser jogada sem infringir o fair-play. Pois, para jogar xadrez, é necessário ao menos saber mover as peças, e isso sempre é aprendido com outra pessoa. Assim, não seria verdade que qualquer lance que jogamos é feito com auxílio de outra pessoa, aquela que nos ensinou a jogar?

Sem contar, continuou Sócrates, os autores dos livros de xadrez que lemos e os youtubers e streamers de xadrez que assistimos. Se todos os nossos lances se baseiam no que aprendemos com eles, será que existe um lance que seja realmente "nosso"?

E, algumas réplicas depois, o diálogo terminou num empate aporético.

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Sócrates, que viveu em Atenas no século V a.C., é considerado um dos pais do pensamento ocidental. Sua importância vem do fato de ter questionado conceitos que seus contemporâneos julgavam bem compreendidos.

Para investigar as ideias das pessoas, Sócrates desenvolveu um método próprio, com duas etapas:

Ironia – por meio de perguntas, expunha a ignorância ou as contradições de seus interlocutores, desmontando a falsa segurança deles.

Maiêutica – nome dado em homenagem à sua mãe, que era parteira; nesta fase, também com perguntas, ajudava o interlocutor a “dar à luz” ideias mais elaboradas ou, ao menos, a perceber a complexidade do tema. Muitas vezes, o diálogo terminava em aporia (impasse), sem resposta definitiva, mas com maior clareza sobre a dificuldade do assunto.

Sócrates entrou em embates com sofistas famosos — mestres da oratória e da argumentação, mais comprometidos com o convencimento do que com a busca da verdade. Acabou sendo acusado de corromper a juventude e de introduzir novos deuses na cidade. Foi condenado à morte por ingestão de cicuta e, em vez de fugir, aceitou seu destino, pois preferia morrer a viver uma vida sob censura.


Vivendo no período da Primeira Revolução Industrial, Karl Marx ficou escandalizado com as más condições de trabalho dos operários ingleses. Ele acreditava que todos os seres humanos deveriam ter os mesmos direitos. No entanto, percebia que, no capitalismo, quem possui mais dinheiro também detém mais poder, inclusive para aumentar sua própria riqueza, já que o capital (dinheiro usado para gerar mais dinheiro) permite o controle dos meios de produção. Já os que não possuem capital ficam à mercê dos empregos que conseguem encontrar, muitas vezes em condições precárias.

Para Marx, a luta de classes era o verdadeiro motor da história. A disputa entre a burguesia, detentora dos meios de produção e interessada em maximizar seus lucros reduzindo ao mínimo as despesas, e o proletariado, que só possui sua força de trabalho para vender, é o que transforma o trabalho em uma atividade exaustiva em vez de recompensadora.

Além disso, Marx afirmava que o trabalho no capitalismo produzia alienação em vários sentidos. As longas jornadas impediam os trabalhadores de cuidarem de si mesmos e de desenvolverem plenamente sua condição humana. Os produtos que fabricavam também os alienavam, pois o processo industrial mascarava o valor que eles efetivamente agregavam. Esse valor não retornava a eles, mas era apropriado pelos capitalistas na forma de mais-valia, isto é, o lucro resultante da diferença entre o que o trabalhador produzia e o que recebia como salário.

Marx acreditava que o destino do capitalismo era destruir a si mesmo, em virtude de suas próprias contradições internas. Esse processo culminaria em uma revolução proletária, que aboliria a propriedade privada da terra e dos meios de produção. As terras, fábricas e oficinas se tornariam públicas, e todos trabalhariam em benefício da coletividade, cada um contribuindo conforme sua capacidade e recebendo conforme sua necessidade. Dessa forma, a exploração desapareceria, a luta de classes deixaria de existir e seria possível instaurar uma sociedade comunista, sem opressores nem oprimidos.

Continuamos atentos, fazendo a cobertura desse evento único, e esperamos que venham mais partidas emocionantes.

E você, quem acha que vai sair vitorioso nessa primeira edição do Campeonato Internacional de Xadrez de Filósofos? Diga nos comentários!

— estdx, para o Chess.com.

Recomendação de leitura: Uma breve história da filosofia, Nigel Warburton, Ed. L&PM, 2024.

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Billy