
Pense Rápido, Jogue Devagar: O Xadrez Segundo Kahneman
Você sabe por que, na Noruega, os professores de xadrez dizem aos alunos para se sentarem sobre suas próprias mãos enquanto jogam? Leia este artigo até o final, que você descobrirá!
É impressionante a quantidade de vezes (muitas) em que o Nobel de Economia israelense Daniel Kahneman cita o xadrez em sua obra-prima, o livro Rápido e devagar: duas formas de pensar.
Daniel Kahneman, Ph.D.
Kahneman começa seu livro defendendo a importância de estudar os mecanismos da mente humana que produzem erros de julgamento e resultam em ações danosas, tanto na vida individual de qualquer pessoa como na própria sociedade. Para o autor, investigar decisões incorretas e suas causas não significa negar a inteligência humana, mas é uma forma de prevenir consequências indesejadas que se ocultam atrás de escolhas aparentemente simples e naturais.
Como fruto de suas pesquisas na Universidade Hebraica de Jerusalém, em parceria com seu colega Amos Tversky, Kahneman publicou artigos descrevendo dezenas de tipos de vieses que ele identificou. Os vieses são heurísticas (modos de resolver problemas) enganosos, nos quais, sem perceber, a pessoa acaba substituindo a pergunta que ela precisa responder por outra pergunta, mais fácil, porém irrelevante para a pergunta original. Um exemplo: um executivo precisa decidir se ele irá investir em ações da Ford. Em vez de analisar as variáveis relevantes, como o potencial de valorização das ações, uma pergunta vem à sua mente: “Gosto de carros da Ford?”, e ele deixa a resposta a essa pergunta subjetiva determinar a sua escolha entre investir ou não investir. Um erro parecido acontece o tempo todo, comigo, quando estou jogando Puzzle Rush ou Puzzle Battle aqui no chess.com só para passar o tempo. A cada puzzle que surge, antes que eu possa fazer o lance que julgo ser o melhor da posição, o último lance do adversário é exibido no diagrama. O que não raro acontece é eu ser influenciado por esse último lance, sendo que muitas vezes ele é totalmente irrelevante para a posição, enquanto aquilo em que eu deveria estar prestando atenção está em outro lugar do tabuleiro.
Enganos como esses são comuns, pois, de acordo com Kahneman, pensar analiticamente é demorado e custoso demais, em termos de energia, para que possamos nos dar a esse luxo o tempo todo. Em vez disso, na maior parte do tempo, pensamos de forma intuitiva, no famoso “piloto automático”, aproveitando nossas experiências prévias, o que funciona para muitas coisas (como para reconhecer um barulho estranho como um sinal de perigo e se proteger, ou, no xadrez, para reconhecer uma peça pendurada ou um mate em 1, se o jogador for minimamente treinado), mas não para outras.
Kahneman, então, descreve dois sistemas de pensamento que acompanham cada um de nós: o Sistema 1, intuitivo e automático, que funciona involuntariamente e sem esforço; e o Sistema 2, analítico e deliberado, mais vagaroso e que requer concentração para funcionar.
Infelizmente, como observado anteriormente, existem muitas situações em que o Sistema 1 não é adequado para tomar uma decisão ou responder a uma pergunta. Responda rápido: Você sabe quantos animais de cada espécie Moisés colocou na arca? Se sua resposta foi “dois de cada”, você acabou de ser traído por seu Sistema 1 (a resposta correta é “nenhum”, já que não foi Moisés, mas Noé, que, de acordo com a Bíblia, fez a arca para abrigar os animais no Dilúvio). Por outro lado, caso já tenha ouvido essa famosa pegadinha, provavelmente se lembrou dela e deu a resposta correta. Depois de ser pego uma vez, seu Sistema 1 aprendeu que a pergunta se trata de uma pegadinha e, ao vê-la de novo, o mesmo sistema acendeu um sinal de alerta, passando a questão ao Sistema 2, que pensou para dar a resposta correta (se já tiver ouvida a pegadinha várias vezes, talvez a resposta correta já tenha até sido aprendida pela Sistema 1, sem necessidade de este acionar o Sistema 2).
Com esse exemplo, percebe-se que um dos motivos pelos quais o Sistema 1 pode induzir a erros são as associações que ele faz entre pares de coisas. Essas associações são tão fortes --- muito já foi dito em livros de psicologia e educação sobre a incrível capacidade do cérebro em se acostumar com padrões --- que muitas vezes nos guiamos por elas, mesmo em casos em que elas não valem. Um exemplo do xadrez: em mais de uma partida minha eu apliquei errado o mate de Philidor, porque não calculei que, quando eu sacrificasse minha dama, meu adversário poderia capturá-la com sua dama (em vez de com uma torre), e essa dama, por sua vez, poderia capturar o meu cavalo, quando eu desse xeque ao rei aparentemente asfixiado do meu adversário. O mesmo vale para outras táticas furadas: identificamos o padrão (o “tema”, como os enxadristas costumam chamar), mas algum detalhe que não calculamos nos atrapalha.
Outro motivo pelo qual nosso Sistema 1 pode nos conduzir a erros é o fato de não sermos experientes o suficiente a ponto de termos perícia sobre o assunto em questão. De fato, quanto mais treino, mais especializado fica nosso “piloto automático”. Por exemplo, os grandes mestres de xadrez jogam melhor não porque usam mais o Sistema 2, mas porque o Sistema 1 deles funciona muito bem para jogar xadrez, e isso foi desenvolvido com muito tempo de prática.
Então, para ficar mais forte no xadrez (ou na matemática, na música, em uma língua estrangeira, …) precisamos fortalecer nosso Sistema 1. E qual o melhor modo de fazer isso? Seria resolvendo o máximo possível de exercícios repetitivos, sem estudos aprofundados e demorados, ou seja, sem ativar nosso Sistema 2? De maneira alguma.
O capítulo 22 de Rápido e Devagar, intitulado “Intuição de Especialista: Quando Podemos Confiar?”, segue dando numerosos exemplos com o xadrez. Kahneman diz que a perícia em atividades como xadrez de alto nível e basquete profissional exige um longo tempo, porque não se tratam de habilidades únicas, mas de uma ampla coleção de mini-habilidades. Para ser jogado em nível profissional, o xadrez requer o conhecimento de um volume imenso de temas táticos e estratégicos. Mas não só isso: é preciso saber lidar com as situações que surgem no tabuleiro. É por isso que resolver exercícios mecânicos sem entendê-los não basta, pois isso até pode criar hábitos automáticos, mas se o contexto mudar, mesmo que ligeiramente, a pessoa errará, porque seu Sistema 1 aplicará o padrão aprendido sem pensar.
Resumindo, tão importante quanto resolver exercícios de tática é ler livros, assistir a aulas de xadrez sobre todas as fases da partida (finais, aberturas, meio jogo) e, claro, jogar partidas e analisá-las, pois assim o Sistema 2 será desenvolvido e o Sistema 1 aprenderá, cada vez mais rapidamente, os padrões corretos.
E como as lições de Kahneman se aplicam na hora de jogarmos uma partida? É aí que entra a frase do começo deste artigo. Na Noruega, os professores de xadrez pedem que as crianças não façam lances precipitados. Ao se sentarem sobre as próprias mãos, os alunos gastam mais tempo em seus lances. Alguns segundos a mais podem ser suficientes para evitar erros tolos causados pelo Sistema 1!
Fonte da informação sobre a Noruega: App Magnus Trainer. Clique aqui e saiba mais sobre apps para melhorar no xadrez.
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